Seguidores

quinta-feira, 30 de julho de 2009

PAPEL AMASSADO*

Uns dias atrás, quando o sol ardia no horizonte, eu olhava pela janela do meu apartamento a cidade onde moro, absurdamente crescendo. Prédios e mais prédios sendo erguidos. Casas e mais casas. Ruas e avenidas sendo abertas. O asfalto cobrindo a terra.
O olhar se perdeu com o pensamento.
Derrepente, meus olhos avistaram uma árvore pequena, cercada de tijolos. Raízes amarradas, galhos quase todos podados na triste calçada de uma rua.
A pequena árvore ali cercada sem poder respirar e tentando sobreviver. Totalmente fragilizada. Viajei nas asas da minha imaginação...

" Vi machados e todas as serras
vi os tratores
os homens e seus capacetes
vi também pássaros
voando sem ter onde pousar
e seus ninhos
agora destruídos
vi um céu vestido
de cinza pelas cinzas
da mata queimada
vi os poucos índios chorando
os animais?
viravam enfeites para
o carnaval
os homens derrubavam
árvores
e as crianças atrás deles
plantando sementes
vi também
homens engravatados
e suas leis
aqueles mesmos
que ficam gritando
com o dedo em riste:
VAMOS SALVAR A AMAZÔNIA
nessa minha viagem louca
vi o velho Chico secar
e os peixes
sem ter onde nadar..."

Parei de viajar. Tudo estava como era.
Eu na janela do meu apartamento. Olhava ainda o cinza e a árvore presa.
Um menino, criança ainda, andava com uma rede na mão. Olhava para todos os lados querendo achar uma árvore para fazer um balanço. Viu como eram frágeis as árvores da sua rua. Todas alí podadas e presas em cercados de cimentos, de madeira e, como eu, chorou.
Olhou para todos os lados só viu o cinza do céu azul.
Veio em mim o desejo de lutar, de gritar, de berrar. Não havia ninguém que me ouvisse. O barulho da cidade engoliria minha voz. O pequeno menino foi embora e eu fechei a janela e voltei a jogar vídeo game.
Tempo depois andando na minha rua, percebi que a pequena árvore não estava mais lá. Havia apenas o cercado de tijolo e o espaço vazio de um buraco sem fim...
Até quando será assim...
Árvores caindo...
Árvores deixando de existir...

ERROS*

1

Desembarquei na rodoviária do Rio de Janeiro às 15h30min. Foram mais de sete horas de viagem. Enquanto estava na estrada, pensei em tudo o que queria e em tudo o que deixei para trás. Pessoas que eu amava e pessoas que me amavam. Deixei minha mãe aflita, meus irmãos menores. Pedi demissão da empresa, desmanchei o noivado, desfiz-me de muitas coisas, antes de resolver sumir. Foram alguns meses juntando dinheiro. Não gastava com nada. Estava determinado a sumir. Queria esquecer tudo e começar de novo. Não contei nada para ninguém. Eu já não tinha amigos.

A viagem foi desgastante.

Eu carregava apenas minha mochila com algumas peças de roupa. Nada em excesso. Levava apenas um kit de sobrevivência. Tinha comigo uma boa quantia em dinheiro o que, segundo meus estudos, daria para me manter por uns meses até arrumar emprego. Já tinha o endereço de uma pensão ali mesmo no Centro do Rio. Fui caminhando e mal podia acreditar que eu estava sozinho no Rio de Janeiro. Logo eu, que nunca tinha saído de São Paulo. Nasci e fui criado no bairro tradicional, a Moóca.

Cheguei na pensão. Era um sobrado mal conservado e a primeira impressão que tive não foi das melhores. Procurei a proprietária. Havia falado com ela alguns dias atrás. O preço que ela havia passado não conferia com o que me foi oferecido.

Toquei a campanhia e saiu uma senhora muito gorda. Trajava um vestido sujo. Assustei-me e não consegui disfarçar. Ela ficou me olhando e eu logo perguntei:

- Aqui é a casa da Andréa?

- Aqui não tem Andréa nenhuma!

Ela virou as costas e fechou o portão sem dizer mais nada. Fiquei aliviado. Agora entendi quando dizem que a primeira impressão é a que fica; fica e ficou. Fui caminhando e vi que por ali passavam vários ônibus para as praias. Logo estava rumo à Copacabana. Pedi ao cobrador que me deixasse em uma avenida principal de Copacabana. Depois de um tempo, estava eu andando na Avenida Barata Ribeiro. Uma avenida movimentada. Tudo era novo e ao mesmo tempo nada diferente de São Paulo. Fui caminhando, procurando algum lugar em que pudesse me hospedar. Fui andando e, derrepente eu estava de frente para o mar. Aquele mar lindo.

Fui até a areia e não resisti. Tirei o tênis, dobrei a barra da calça e fui até beira mar. A praia era linda demais. Pessoas correndo, andando, pedalando. Gente bonita. A tarde estava quente. Uma brisa deixava tudo perfeito. Sentei na areia e fiquei ali sem perceber que a noite ia chegar e eu ainda não tinha um lugar para ficar. Comecei a ficar com receio por causa do dinheiro que eu carregava. Eu nem podia pensar em perder aquela mochila. Coloquei de novo o tênis e voltei para a Avenida Barata Ribeiro. Comecei a perguntar aos comerciantes sobre pousadas, pensões e cheguei até a pousada Palmeiras. Entrei e senti um ambiente bem aconchegante.

- Pois não! Posso ajudar?

- Boa tarde! Eu preciso de um quarto.

- Quanto tempo?

- Não tenho previsão, mas posso pagar adiantado.

- Você quer com meia pensão? – perguntou a recepcionista que tinha um olhar curioso.

- Meia pensão é com uma refeição?

- Café da manhã e almoço. A janta é por sua conta.

- Meia pensão.

- Preciso de um documento com foto.

Eu olhava aquela moça na minha frente. Morena, queimada de sol. Marcas de biquíni bem à mostra. Usava uma camiseta regata branca, pulseiras, anéis. Tinha cabelos bem negros e lisos. Olhos castanhos esverdeados. Usava uma bermuda jeans e um chinelo de couro. Não deveria ter mais que vinte e quatro anos. Fiquei tranquilo. Sua presença me fez bem. Iria ser bom vê-la todos os dias.

- Você pode, por favor, preencher essa ficha?

- Claro. Seu nome é?

Ela me olhou como se eu tivesse feito a pergunta mais absurda do mundo. Houve um silêncio mortal. Nossos olhos estavam mergulhados um no outro. Desviei o olhar e comecei a preencher a ficha.

- Você é de São Paulo?

continua


SEI LÁ*

"Eu quero viver...
Viver como se a vida fosse acabar amanhã.
Quero viver além dos meus doze anos."

... meu pai brigou comigo só porque eu fui de shorts na escola e o professor disse que eu estava tendo um comportamento bem diferente. Só sei que naquele dia, daquele dia em diante, minha vida, meu desejo de viver, mudaram completamente e meus pais também mudaram.

Capítulo I
Primeiro Beijo

Meu pai estava trabalhando e minha mãe tinha acabado de chegar. Ela estava cansada e ficou deitada no sofá. Minhas amigas bateram na porta me chamando para descer pois todos estavam lá embaixo (meus pseudo amigos) e iam acender uma fogueira. Aproveitei o cansaço da minha mãe e pedi para sair um pouco (sempre rezava para que ela deixasse). Ela disse que era para eu voltar logo, pois meu pai estava para chegar.
Enfim eu estava livre. Podia ser quem eu quisesse. Podia estar com gente que pensava como eu.
No meio de todos, ele estava lá. Aquele jeito brincalhão me encantava e minhas amigas diziam que ele queria ficar comigo. Senti um frio na barriga. Elas diziam coisas que eu ainda não entendia. Nessas horas sempre lembrava do meu pai dizendo que eu tinha onze anos e que tudo tinha o tempo certo para acontecer. Mas quando? Que tempo é esse que não chega nunca! Eu queria viver tudo e depois, meu pai não precisava saber.
Como eu deveria agir? Não queria parecer idiota para ele e muito menos para minhas amigas. Não me lembro bem como aconteceu. Lembro apenas que ele me pegou pela mão e me puxou para um lugar, acho que era atrás do prédio. Uma sensação estranha tomou conta de mim. Uma mistura de medo e vontade ao mesmo tempo. Eu fui, queria e precisava sentir. Ele me beijou.
Sentir sua língua na minha boca foi meio nojento. Eu não podia demonstrar. Eu sabia que minhas amigas estavam espiando.
Caramba! Foi uma sensação única. Eu sabia, ele gostava de mim. Minhas amigas estavam certas.
Fui para casa. Logo meu pai chegou. Eu tinha que disfarçar, precisava. Meu pai me conhece bem. Minha mãe é mais tranquila mas meu pai, ele percebe. Naquela noite não percebeu.
Fui dormir. Quando me deitei, a cama parecia flutuar. Sentia-me nas nuvens. Eu ainda tinha aquela sensação dentro de mim. Agora eu não era mais a boba da turma. Eu tinha beijado pela primeira vez...

continua

quarta-feira, 29 de julho de 2009

APARÊNCIAS*

... o que eu acho?
Acho que seu casamento é um casamento de aparências.
Ninguém age como ela agia. Nenhuma mulher se comporta como ela se comportava. Tava na cara. Eu era peça fundamental para que ainda se sentisse amada. Para que ainda se sentisse viva.
Ela tinha de tudo. Vida completamente estável.
Não conseguia entender e achar um lugar para mim. Logo eu que nem tinha um lugar para cair morto. Talvez eu alimentasse suas fantasias e desejos. Era arriscado e ela não se importava. Parecia que não tinha nada a perder.
No começo, eram apenas conversas despretensiosas. Jamais podia imaginar que um dia, falaríamos sobre isso. Ela nunca me confessou que seu casamento era coisa falida. Nunca reclamou que o marido deixasse faltar nada. Ao contrário, fazia juras de amor eterno. Ela era duas. Duas em uma.
Sempre me buscava, sempre me queria por perto. Ela sempre me incluía nas suas fantasias.
O que eu acho?
Na verdade, em todo e qualquer sentimento, há dose de um veneno chamado amor. Derrepente, as pessoas criam seus castelos, criam suas mentiras e se alimentam dela. Cada um quer apenas sobreviver diante do seu próprio caos. Ela apenas quer ser amada. Ela quer apenas ter alguém que possa amenizar sua solidão, mesmo que negue, há sim solidão em seu mundo.
Ela é uma mulher bela. Uma mulher que chama atenção por onde passa. Não posso dizer mais porque não sei mais. Tenho apenas a convicção que algo não vai bem e que se fez a fantasia do amor para que o amor próprio não morresse. Uma espécie de fuga ou sei lá que nome se pode dar para tudo isso.
O que eu posso e o que eu vou fazer é estar sempre por perto porque não há nada melhor que fazer bem para alguém. Ela também me faz bem. Da sua maneira... (continua)

texto escrito na época da faculdade de direito. 1994

domingo, 26 de julho de 2009

PARA ONDE FOI TODO MUNDO*

Parte 1




2006.
Era aniversário de Eduardo. Ele estava completando sete anos. Como as crianças de sua idade, já sabia ler e escrever. Tinha, além das aulas normais da escola, aulas particulares de inglês, informática, violão e ainda fazia nas horas vagas, natação.
José, pai dedicado, fazia todas as vontades do menino. Talvez por se tratar de filho único e também por ter tido uma infância de privações, oferecia ao filho uma vida de luxo e conforto. O menino tinha tudo em seu amplo quarto de um apartamento em um bairro nobre de São Paulo. Televisão, aparelho de som, telefone, computador, brinquedos e poucos livros. Era normal. As crianças não mais se interessavam por livros. Viviam “conectados” a um mundo cheio de...
Os amigos começavam a chegar para a festa. Eram amigos da escola, primos, amigos dos amigos, amigos dos primos. Logo, o salão de festas do prédio estava lotado. A animação da festa não era mais feita por palhaços. Eram agora animadas pelos DJ. A música era sempre barulhenta e agitada.
José se preocupou em montar a festa exatamente como o filho pediu. Instalou computadores para as crianças ficarem conectadas, contratou uma lanchonete famosa para cuidar da comida. Bolo com velinhas e parabéns estavam fora de cogitação.
Dudu era o dono da festa. Menino educado recebeu todos os amigos e agradeceu a todos pelos presentes e presentes e presentes e presentes recebidos. Eram muitos presentes. O seu quarto ficou lotado.
Dona Ana, mãe de Dudu e esposa de José, tratou de arrumar tudo. Detestava bagunça e coisas espalhadas. Cancelou a folga das empregadas e andava pelo prédio controlando as ações da criançada. Eram hiper-ativos. Lembrou dos seus tempos de criança e reclamou em pensamento:
- Não vejo a hora dessa criançada toda ir embora.
Sabendo que ninguém podia ouvir seus pensamentos, tratava todos com uma paciência e uma cordialidade impecáveis. Logo, tudo voltaria ao normal. Ficava olhando de longe. Sentia um pouco de ciúmes do tratamento de José com seu filho. Antes, todas as atenções eram para ela. Depois do nascimento de Eduardo, tinha ficado em segundo plano. Era mãe e esposa dedicada, mas sempre reclamava que José estragava o filho fazendo todas as suas vontades. Mal saía um brinquedo, Dudu ganhava. Os brinquedos em sua maioria eram importados e ocupavam um guarda roupa inteiro. Todos em perfeito estado. Na caixa, protegidos de tudo e de todos. Até mesmo o menino Dudu não tinha acesso aos jogos e brinquedos. O que ele gostava mesmo, era dos jogos eletrônicos e do computador de última geração que o pai comprou.
Dona Ana resolveu ir até o quarto para ver o que o filho tinha ganhado. Entrou no quarto e ficou perdida em meio a tantos embrulhos. Os tios e avós, sempre davam roupas. Os amigos “CDS” para vídeo game. Um embrulho chamou a atenção de Dona Ana. Era um pacote simples. Olhou dos lados e resolveu abrir. Deu de cara com um livro de Monteiro Lobato. Deu com os ombros e tratou logo de colocá-lo na gaveta. Estranhou, pois nunca seu filho tinha ganhado um livro. Ainda mais um que falava de lendas como Saci, Boitatá, Curupira e companhia.
(...)

VERSA & VICE*

PALPÉRRIMO


Sem ter absolutamente nada, Antônio sai de casa às cinco da manhã para procurar emprego. Sem qualificação e sem nunca ter tido carteira assinada, vivia de bicos que conseguia arrumar por aí. Era o típico nordestino, que desembarcara em São Paulo, sonhando com dias melhores.
Hoje, pai de cinco filhos, via a angústia de sobreviver das esmolas e das migalhas que jogavam em seu chão. O filho maior tinha seis anos e o menor apenas dois meses. A mulher com os seios flácidos, estava ali, sentada na beira da cama, pensando o que iria dar para os filhos se alimentarem.
Antônio, muitas vezes, andava o dia inteiro. Era homem que não temia trabalho. Era jardineiro, encanador, mecânico, borracheiro, eletricista, soldador, carpinteiro, marceneiro, pedreiro, pintor. Tudo o que a vida ensinou. Era forte, dotado de músculos e de uma gentileza irreconhecível nos dias de hoje. Às vezes, ganhava o suficiente para o pão e o leite das crianças. A mulher, por causa dos filhos pequenos, não trabalhava. Apenas cuidava do barraco onde moravam. Casa pobre de apenas dois cômodos. O banheiro ficava na parte de fora do barraco, o que expunha a todos, às mais diversas e possíveis doenças. Os móveis, em sua maioria foram achados nas muitas andanças de Antônio por aí. Não tinham televisão. A luz elétrica era puxada do poste da avenida central e nunca, nunca veio alguém para reclamar. A água era também puxada dos diversos canos e emendas. Cada barraco recebia um filete apenas de água. O banho era em canecas de água. Uma vida com certeza injusta, diante de tudo o que já havia passado. Mesmo assim, a fé parecia ser inabalável.
Antônio não conhecia ninguém nessa megalópole chamada São Paulo. Male má conhecia os vizinhos. Moravam em uma, dessas milhares de favela que existem por aí. Uma vida de sacrifícios. Não havia prazer algum. A não ser o prazer de estarem todos reunidos quando a noite chegava. Antônio era um pai dedicado. Adorava fazer os filhos menores darem risadas. Colocava-os na cama e se espremia na cama com a mulher. Naquele momento, parecia enfim que eram um só.
De manhã antes de sair, café preto quando havia e pão seco. Os dias se faziam dessa maneira. Algumas vezes, a mãe era obrigada a sair com os filhos pequenos para pedir comida. Algumas pessoas caridosas doavam alimentos, doavam roupas. A vida se desenhava de modo amargo.
Naquele dia, Antônio não tinha dinheiro para pegar o ônibus. Tinha que ir a pé. Eram pelo menos cinco kilômetros até o centro da cidade. Pensou que podia conseguir algum emprego, fazer algum bico. Andava com suas ferramentas de jardinagem. Era o que mais conseguia. Cortar o mato de algum jardim. Mas a aparência não ajudava muito. Estava abatido. As roupas estavam surradas. Os sapatos sujos e quase todo remendado. Não passava muita confiança. As pessoas cada vez mais escravas da boa aparência.
Antônio estava cansado. Parou em um bar e pediu um copo de água. Aquela água refrescava e dava mais força. Não pensava como iria voltar. Queria apenas garantir o pão das crianças e quem sabe o leite, o arroz, um pacote de bolacha. Sua mulher se humilhava mais. Antônio preferia oferecer trabalho a esmolar. Por isso, muitas vezes voltava para casa sem nada. Quantas vezes dormiu com fome para não tirar o pouco das crianças.
Estava passando em frente de uma bela casa, com um enorme jardim. Resolveu tocar a campainha e oferecer seus serviços como jardineiro. Demoraram um pouco para atender. Percebeu que tinha gente na casa, pois sentiu que o espiavam da janela. Antônio pegou a tesoura de cortar grama e mostrou. Um sinal fez com que aguardasse. Da lateral da casa, surge um velho senhor arrastando os passos.
- Pois não!
- Oi, eu faço trabalho de jardinagem...

VOZES MUDAS*

Eu não desejava nada daquilo. Ter cortado o dedo, criou em mim, uma nova esperança. Eu jamais podia imaginar que naquele dia que fui para fazer um simples curativo, eu não sairia mais do hospital. Tudo aconteceu muito rápido. Eu não falava nada. Eu não queria falar. Apenas escutava os médicos decidindo o que era melhor para mim. Eles não sabiam que aquela decisão, iria desencadear um sofrimento que eu não desejava para ninguém.
Eles estavam fazendo todos os exames que podiam. Decidiram que deveriam fazer uma raspagem para tirar as partes necrosadas do meu pé. Saber que tudo aquilo começou por causa de uma meia. Eu sabia que não deveria me expor ao cansaço e às longas caminhadas, mas sabia também que jamais aceitaria a enfermidade. Eu tomava os remédios normalmente. O pior de tudo era ser submetida a uma dieta rigorosa. Minha diabetes estava crônica. Eu vivia à base de insulina. Minha filha montou um pequeno hospital em casa. Era uma avalanche de remédios. Não podia fazer mais nada que me dava prazer. Fumar era um crime que eu não poderia mais cometer. Beber minha cerveja gelada era algo que eu somente tinha na lembrança. Com o passar dos dias, o que eu mais fazia, era me lembrar de tudo. Lembrava da minha mãe, do meu irmão querido, minhas irmãs, minhas filhas, minha neta e também do meu marido. Apesar de todas as brigas e divergências, eu não conseguia sentir raiva. Tinha em mim, apenas mágoas. Não queria me lembrar de coisas tristes. Já estava fraca demais. Desejava imensamente que tudo aquilo passasse de uma vez. Queria ir trabalhar. Eu sempre trabalhei. Como estariam aquelas crianças que sempre cuidei desde pequena. Será que estavam se alimentando, será que a mãe estava dando a elas o mesmo carinho que eu dava.
Enquanto os médicos ficavam me olhando, eu ficava pensando na minha neta. Como ela estava linda. Eu não queria que ela me visse assim. Precisava estar bem para estarmos juntas no seu aniversário de quinze anos. Eu ia dar um presente bem lindo para ela. Pensava nas minhas filhas. Será que falhei em alguma coisa? Minhas filhas ainda precisavam de mim, sempre iriam precisar. Eu também queria terminar de arrumar a casa de minha mãe. Faltava pouco. Seria um lugar onde eu poderia fugir e curtir um pouco mais as pessoas que gosto.
O que eu mais queria naquele momento, era largar tudo aquilo. Sair daquele lugar, retomar minha vida.
O que os médicos falaram, é que o meu pé estava comprometido. Eles deveriam fazer uma intervenção cirúrgica. Iriam tirar a parte necrosada. Assim, as possibilidades de melhora seriam maiores. Eu não sentia verdade nas palavras dos médicos. Eu sentia que tudo ia muito além do que eles diziam. Eu via pelos olhares sobrecarregados de dó. Tudo o que eu não queria é que sentissem pena de mim. Queria era ir embora. Aquela comida me fazia mal. Mesmo que eu me esforçasse. Não tinha sal, parecia uma papa. As enfermeiras entravam e saíam do quarto. Mesmo eu tendo convênio, estava em uma enfermaria de um hospital público. As noites eram barulhentas. Fazia tempo que eu não dormia um sono reconfortante. Sentia dores no meu pé, além disso, minha barriga estava muito inchada o que dificultava meus movimentos. As acompanhantes do quarto pareciam estar num salão de festas. Todas como eu, moribundas e mesmo assim, não paravam de falar. Eu sentia fortes dores e elas falando, falando. Eu queria apenas um pouco de tranquilidade. Tranquilidade para mim e para as pessoas que estavam me ajudando. Sabia que aquela situação mexia com a vida das pessoas e eu não queria.
A noite daquele dia passou tranquila. De manhã não poderia comer nada, pois entraria para a cirurgia. Os médicos não falavam nada além de:
- Vamos fazer apenas um procedimento de raspagem. A senhora pode ficar tranquila, dona Genézia.
Genézia! Genézia! Logo eu que odiava esse nome, agora me via obrigada a escutá-lo sempre. Mesmo que eu quisesse explicar, eles não entenderiam. Meu nome era Janete. Era assim que eu gostava de ser chamada. Era assim que as pessoas me conheciam.
Logo cedo as enfermeiras chegaram. Começou o procedimento para a cirurgia. Fui levada de maca até o centro cirúrgico. Eu estava apreensiva. Apesar dos médicos afirmarem que a anestesia seria local, todo procedimento cirúrgico me deixava nervosa.

*-*

Eu escutava vozes bem longe. Finalmente por alguns momentos eu consegui ter um sono reconfortante. Não sentia dor. Sentia apenas uma paz. Sabia que eu não tinha morrido, pois escutava vozes. Tentava abrir os olhos, mas não conseguia. Morta eu não estava, mas os gritos e a correria começaram a me preocupar. Derrepente, aquela paz que eu sentia, tinha ido embora. Eles – os médicos – estavam agitados. Escutava apenas de longe:
- Ela não está respondendo. Estamos perdendo ela. Estamos perdendo ela. A pulsação está caindo. Precisamos trazê-la de volta.
Minha voz não saía, meus olhos mal se abriam, mesmo assim eu conseguia olhar tudo e dizia:
- Eu estou aqui. Hei, eu estou aqui!
A impressão era que eles não me escutavam. Será que eu estava morrendo? Eu não podia morrer! Não ainda! Tinha muitas coisas para fazer. Minhas filhas, minha neta e o Manoel, como ele ficaria sem mim. Eu não estava preparada. Voltei a sentir aquela paz. Devagar abri os olhos e vi que estava no quarto. Era noite, isso eu sabia pelo silêncio do hospital. A dor era mais fraca mais ainda estava lá.
Quanto voltei e os médicos foram me colocar na maca para me levarem para o quarto recebi a notícia que com certeza mudaria todo meu destino:
- Dona Genézia, nós fizemos tudo o que pudemos. Tivemos que amputar o seu pé.
Naquele momento, eu não sabia o que falar, o que dizer, o que pensar. Sabia que minha vida não seria a mesma. Como eu ia andar? Como eu ia me mexer? Levar minha vida normalmente? O caminho até o quarto foi o mais longo de toda a minha vida. Não queria e não podia pensar em nada. Não queria ver ninguém. Queria apenas ficar deitada.
No quarto, olhava para minhas pernas. Eu não acreditava que eu tinha chegado naquele ponto. Eles falaram que iam apenas fazer uma raspagem e amputaram meu pé. Eu sabia que havia algo mais. Eu sabia que eles não diziam nunca a verdade. Será que eles comunicaram minhas filhas? Será que elas sabem que não sou mais a mesma? Será que elas sabem que amputaram meu pé? Aquela foi a noite mais horrível. Eu não acreditava que estava mutilada. Lembrei do meu irmão Beno, que morreu em um quarto de hospital totalmente mutilado. Naquele instante senti medo. Pela primeira vez, senti medo.
Logo de manhã, enfim, vi um rosto conhecido. Minha sobrinha chegou! Foi um abraço confortante. Um abraço que eu precisava sentir para aliviar o medo. O abraço que me faria sentir viva.
- Olha o que fizeram comigo Elenice!
Puxei o cobertor e mostrei minha perna sem o pé direito. O semblante dela disse tudo. Ficou pálida! A cor dos lábios sumiu com uma rapidez incrível. Ficou muda olhando para a minha perna sem dizer nada! Não havia o que dizer!
Ficamos por instantes em silêncio.


ESTRANHA SENSAÇÃO


Minha filha chegou.
Ela tentava disfarçar, mas era nítida a sua agonia em me ver ali. Pelos olhos vermelhos, percebi que ela já sabia o que havia acontecido. Como sempre, Rosana tinha apenas palavras de força e de incentivo. Jamais vi minha filha se abater. Mesmo em momentos de extrema necessidade, ela sempre tinha um sorriso nos lábios. Sempre foi assim desde pequena. Uma flor e como meu irmão João dizia; uma jóia rara. Rosana para mim, era uma menina crescida que sempre precisaria de cuidados e de atenção. Parecia frágil, uma peça de porcelana, um cristal. Diferente da irmã que já puxou mais este meu lado prático. Posso dizer que Rosana é a emoção pura e Ariadne a parte prática, a razão. Sei que também se emocionava, mas jamais se mostrava abatida. Sei que tinha seus momentos de fragilidade pura, mas não era para mim, que ela demonstrava isso. Eu era assim. Jamais me vergava e quando vergava, nunca quebrava. Agora estava ali, diante de algo completamente novo em minha vida!
Rosana tentava me confortar. Falava em prótese e em uma vida normal. Eu olhava aquele semblante abalado, fragilizado. Não conseguia dizer nada. Perguntava da minha neta. Lembrava dela a todo o momento. Eu sabia que para ela seria difícil me ver assim. Eu também não queria ver naquele rosto lindo, as marcas de preocupação e tristeza.
- É engraçado, Rosana! Parece que meu pé está lá. Eu sinto ele! Posso até mexer os meus dedos.
- Ah mãe, é normal. Essa sensação é normal.
Eu não me sentia bem. Apesar da amputação, as dores ainda estavam presentes. Não podia me mexer na cama e no quarto, aquelas mulheres agindo como se estivessem em um clube. A situação pedia silêncio, reflexão, um momento para entrarmos em contato com nosso íntimo. Eu já não me sentia bem. Estava inchada, mal podia me mexer. Não queria ver ninguém. Queria ficar em silêncio, mas a balbúrdia no quarto era grande.
Minha filha estava lá. Olhava para mim. Uma mistura de dó, de sufoco, de desespero. Ela não sabia o que fazer para amenizar.
- Mãe, amanhã cedo a Luciene vem ficar com a senhora e a noite eu venho. Não vou conseguir deixar a senhora aqui sozinha. Vou ficar em casa angustiada.
- Não quero! Não quero causar nenhum transtorno!
Eu não queria ninguém ali comigo. Não queria me sentir dependente. Não aceitava aquela situação. Minha filha já tinha a sua vida sofrida. Não era justo nem comigo e muito menos com ela. Não tive força para dizer mais nada. Não sei o por quê. Não queria confessar que adorava tê-la por perto. Senti-me mais segura. Mesmo que a noite eu não conseguisse dormir, sabia que ela estava lá para me socorrer. O que me irritava, era acordar durante a noite e ver uma pessoa ali feito galinha, encorujada e sem fazer nada. Eu sabia que a situação era diferente. Eu não tinha mais o pé direito e sabia que podia precisar de auxílio. Na verdade, eu ia precisar de auxilio. Eu estava inchada, sentia dificuldades para me mexer, sentia dores e mais dores. Odiava a comida do hospital. Não aguentei e comentei com minha filha:
- As pessoas vêm aqui e não trazem nada para eu comer!
- Mãe, o hospital dá uma comida balaceada. Eles seguem uma dieta.
- Que dieta, Rosana! Eles só servem chá. Não vejo a hora de tomar café com leite, comer alguma coisa com sustância.
- A senhora quer que eu traga alguma coisa? Uma garrafa de café com leite?
- Traz minha filha! Traz sim!
As noites com minha filha lá, eram tranquilas. Enfim, eu podia dormir sem me preocupar. De manhã, as coisas ficavam mais complicadas. Tinha que tomar banho, fazer o curativo e dependendo das enfermeiras, eu tinha verdadeiro pânico. Elas não sentiam o mínimo...

DISRITMIA*

Numa havia pensando em sumir, mesmo tudo estando cada vez mais difícil. A mulher cobrando a minha instabilidade e gastando mais do que posso pagar. Filhos rebeldes que não gostam de estudar, que não gostam de trabalhar. Há um tempo, eu me preocupava. Ia atrás, corria, fazia de tudo. Pagava faculdade dos dois filhos, dei carro, mesada. Eles nem aí. Tudo o que eu tinha, eu herdei da minha família. Meu pai trabalhou muito para manter esse império. Agora vejo tudo isso desaparecendo.
Impostos e dívidas. Tentei manter a todo custo as aparências. Dizer para todo mundo que estava tudo bem. Continuamos fazendo festas em casa. Íris não podia pensar em parar. Ela era frágil demais para aceitar que estávamos perto da ruína. Meus filhos Pablo e Rubens. Eles queriam apenas ostentar o luxo e gastar dinheiro com as mulheres. Eles gêmeos. Não se desgrudavam. Um fazia uma tatuagem, o outro ia lá e fazia uma também. Quando eles nasceram, eram meu orgulho. Sei que fui um bom pai e um péssimo pai também. Dei de tudo sem colocar limites e acabei com tudo.
Nunca havia pensando em sumir. Confesso que tenho pensado muito nesses últimos dias. Tenho feito contas, tenho pesquisado lugares, meios de simplesmente sumir. Tanta gente desaparece no mundo sem deixar nenhuma pista. Cada dia a idéia estava mais viva em mim. Eu e Íris não tínhamos uma relação há mais de dois anos e mesmo assim, nunca fui infiel. Não quero garotinhas no meu pé, tirando o pouco que me resta. Queria apenas instante de paz e que no fundo me esquecessem.
Quando chegar em casa se torna um martírio, é hora de repensar. Íris nunca estava e quando estava, ou malhava feito louca ou estava na piscina ou então fazendo sessões de Reiki. Fazia a empregada colocar a mesa e eu jantava sempre sozinho. Meus filhos, eu somente os via quando queriam mais dinheiro.
Naquela noite foi diferente. Depois de jantar, fui para a sala arquitetar meus planos para desaparecer. Queria deixar todos em situação confortável. Venderia a casa e compraria um apartamento menor em um bairro mais simples. Venderia os carros, a empresa e os deixaria bem. Depois eles que arcassem com seus sonhos de consumo. O valor de tudo somado, mais o dinheiro que eu tinha em investimentos, dariam para pagar os funcionários, deixar um carro para eles e uma boa pensão para se manterem por um tempo. Ia falar com meu advogado. Deixaria procuração para que ele resolvesse tudo por mim. Não queria mais ter dor de cabeça com nada. Queria morrer e renascer em outro lugar e eu sabia que eu podia fazer isso.
Fui deitar por volta de uma da manhã. Íris estava como sempre. Máscara de cremes no rosto. Eu olhava e pensava:
- Não foi com essa mulher que me casei.
Íris não aceitava envelhecer. Colocou silicone porque achou que seus seios estavam flácidos. Fez lipoaspiração, aplicações e aplicações de Botox. Ficava cada vez pior e não seria eu que diria isso, jamais.
O telefone tocou. Olhei no relógio, eram duas e meia da manhã. Senti um calafrio que jamais havia sentido. Sabia que meus filhos não estavam em casa. Eu sabia quando chegavam, pois não dormia profundamente enquanto eles não estivessem dormindo.
- Sr. Marconi?
- Sim, quem fala?
- Aqui é o delegado de polícia. Por favor, fique calmo!
- Diz o que aconteceu com meus filhos.
Nesse momento Íris já tinha pulado da cama e estava de pé gritando feito louca.
- Por favor, o que houve?
- O senhor pode vir até a Rua dos Arautos? Fica no bairro da Cruz Alta.
- Eu sei onde é. Estou a caminho. Diga por favor, que está tudo bem!
- Sinto muito!
Ele desligou o telefone.
Nenhum buraco poderia ser mais fundo do que esse que acabou de abrir sob meus pés. Peguei a chave do carro e fui com Íris para o local informado.
Logo puder perceber os giroflex da polícia. Muitas pessoas estavam naquele horário na rua. Desci do carro e tentei ultrapassar aquele muro de gente. Havia cordão de isolamento e atrás dele um corpo coberto. Eu não pensava mais em nada. Olhei ao redor e vi o carro dos meninos de pernas para o ar. Não dava para identificar que carro era aquele. Eu não sentia mais nada. Não havia chão. Não havia mais nada.
Um policial veio ao meu encontro. Disse-me que o outro rapaz havia sido levado para o hospital. Devagar fui me arrastando para ver o corpo que estava coberto. Era o corpo de Rubens. Morto, deformado, deitado ali no chão frio.
Sentei no chão. Íris berrava e depois de tantos anos, eu entendia sua dor.
Depois de horas, acordei no hospital.
Eu estava sedado. Queria apenas notícias do meu outro filho e da minha mulher. O médico pediu-me calma e deu a notícia do falecimento do meu outro filho. Tudo ali havia acabado. Tive a certeza enfim do quão egoísta eu fui. Não pensava em nada. Não sentia nada. Queria apenas ver minha mulher. Minha pobre e delicada Íris. Eu não tinha mais aquela vontade de desaparecer. Eu havia desaparecido naquele instante.
- Por favor, onde está minha mulher?
...