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domingo, 26 de julho de 2009

VOZES MUDAS*

Eu não desejava nada daquilo. Ter cortado o dedo, criou em mim, uma nova esperança. Eu jamais podia imaginar que naquele dia que fui para fazer um simples curativo, eu não sairia mais do hospital. Tudo aconteceu muito rápido. Eu não falava nada. Eu não queria falar. Apenas escutava os médicos decidindo o que era melhor para mim. Eles não sabiam que aquela decisão, iria desencadear um sofrimento que eu não desejava para ninguém.
Eles estavam fazendo todos os exames que podiam. Decidiram que deveriam fazer uma raspagem para tirar as partes necrosadas do meu pé. Saber que tudo aquilo começou por causa de uma meia. Eu sabia que não deveria me expor ao cansaço e às longas caminhadas, mas sabia também que jamais aceitaria a enfermidade. Eu tomava os remédios normalmente. O pior de tudo era ser submetida a uma dieta rigorosa. Minha diabetes estava crônica. Eu vivia à base de insulina. Minha filha montou um pequeno hospital em casa. Era uma avalanche de remédios. Não podia fazer mais nada que me dava prazer. Fumar era um crime que eu não poderia mais cometer. Beber minha cerveja gelada era algo que eu somente tinha na lembrança. Com o passar dos dias, o que eu mais fazia, era me lembrar de tudo. Lembrava da minha mãe, do meu irmão querido, minhas irmãs, minhas filhas, minha neta e também do meu marido. Apesar de todas as brigas e divergências, eu não conseguia sentir raiva. Tinha em mim, apenas mágoas. Não queria me lembrar de coisas tristes. Já estava fraca demais. Desejava imensamente que tudo aquilo passasse de uma vez. Queria ir trabalhar. Eu sempre trabalhei. Como estariam aquelas crianças que sempre cuidei desde pequena. Será que estavam se alimentando, será que a mãe estava dando a elas o mesmo carinho que eu dava.
Enquanto os médicos ficavam me olhando, eu ficava pensando na minha neta. Como ela estava linda. Eu não queria que ela me visse assim. Precisava estar bem para estarmos juntas no seu aniversário de quinze anos. Eu ia dar um presente bem lindo para ela. Pensava nas minhas filhas. Será que falhei em alguma coisa? Minhas filhas ainda precisavam de mim, sempre iriam precisar. Eu também queria terminar de arrumar a casa de minha mãe. Faltava pouco. Seria um lugar onde eu poderia fugir e curtir um pouco mais as pessoas que gosto.
O que eu mais queria naquele momento, era largar tudo aquilo. Sair daquele lugar, retomar minha vida.
O que os médicos falaram, é que o meu pé estava comprometido. Eles deveriam fazer uma intervenção cirúrgica. Iriam tirar a parte necrosada. Assim, as possibilidades de melhora seriam maiores. Eu não sentia verdade nas palavras dos médicos. Eu sentia que tudo ia muito além do que eles diziam. Eu via pelos olhares sobrecarregados de dó. Tudo o que eu não queria é que sentissem pena de mim. Queria era ir embora. Aquela comida me fazia mal. Mesmo que eu me esforçasse. Não tinha sal, parecia uma papa. As enfermeiras entravam e saíam do quarto. Mesmo eu tendo convênio, estava em uma enfermaria de um hospital público. As noites eram barulhentas. Fazia tempo que eu não dormia um sono reconfortante. Sentia dores no meu pé, além disso, minha barriga estava muito inchada o que dificultava meus movimentos. As acompanhantes do quarto pareciam estar num salão de festas. Todas como eu, moribundas e mesmo assim, não paravam de falar. Eu sentia fortes dores e elas falando, falando. Eu queria apenas um pouco de tranquilidade. Tranquilidade para mim e para as pessoas que estavam me ajudando. Sabia que aquela situação mexia com a vida das pessoas e eu não queria.
A noite daquele dia passou tranquila. De manhã não poderia comer nada, pois entraria para a cirurgia. Os médicos não falavam nada além de:
- Vamos fazer apenas um procedimento de raspagem. A senhora pode ficar tranquila, dona Genézia.
Genézia! Genézia! Logo eu que odiava esse nome, agora me via obrigada a escutá-lo sempre. Mesmo que eu quisesse explicar, eles não entenderiam. Meu nome era Janete. Era assim que eu gostava de ser chamada. Era assim que as pessoas me conheciam.
Logo cedo as enfermeiras chegaram. Começou o procedimento para a cirurgia. Fui levada de maca até o centro cirúrgico. Eu estava apreensiva. Apesar dos médicos afirmarem que a anestesia seria local, todo procedimento cirúrgico me deixava nervosa.

*-*

Eu escutava vozes bem longe. Finalmente por alguns momentos eu consegui ter um sono reconfortante. Não sentia dor. Sentia apenas uma paz. Sabia que eu não tinha morrido, pois escutava vozes. Tentava abrir os olhos, mas não conseguia. Morta eu não estava, mas os gritos e a correria começaram a me preocupar. Derrepente, aquela paz que eu sentia, tinha ido embora. Eles – os médicos – estavam agitados. Escutava apenas de longe:
- Ela não está respondendo. Estamos perdendo ela. Estamos perdendo ela. A pulsação está caindo. Precisamos trazê-la de volta.
Minha voz não saía, meus olhos mal se abriam, mesmo assim eu conseguia olhar tudo e dizia:
- Eu estou aqui. Hei, eu estou aqui!
A impressão era que eles não me escutavam. Será que eu estava morrendo? Eu não podia morrer! Não ainda! Tinha muitas coisas para fazer. Minhas filhas, minha neta e o Manoel, como ele ficaria sem mim. Eu não estava preparada. Voltei a sentir aquela paz. Devagar abri os olhos e vi que estava no quarto. Era noite, isso eu sabia pelo silêncio do hospital. A dor era mais fraca mais ainda estava lá.
Quanto voltei e os médicos foram me colocar na maca para me levarem para o quarto recebi a notícia que com certeza mudaria todo meu destino:
- Dona Genézia, nós fizemos tudo o que pudemos. Tivemos que amputar o seu pé.
Naquele momento, eu não sabia o que falar, o que dizer, o que pensar. Sabia que minha vida não seria a mesma. Como eu ia andar? Como eu ia me mexer? Levar minha vida normalmente? O caminho até o quarto foi o mais longo de toda a minha vida. Não queria e não podia pensar em nada. Não queria ver ninguém. Queria apenas ficar deitada.
No quarto, olhava para minhas pernas. Eu não acreditava que eu tinha chegado naquele ponto. Eles falaram que iam apenas fazer uma raspagem e amputaram meu pé. Eu sabia que havia algo mais. Eu sabia que eles não diziam nunca a verdade. Será que eles comunicaram minhas filhas? Será que elas sabem que não sou mais a mesma? Será que elas sabem que amputaram meu pé? Aquela foi a noite mais horrível. Eu não acreditava que estava mutilada. Lembrei do meu irmão Beno, que morreu em um quarto de hospital totalmente mutilado. Naquele instante senti medo. Pela primeira vez, senti medo.
Logo de manhã, enfim, vi um rosto conhecido. Minha sobrinha chegou! Foi um abraço confortante. Um abraço que eu precisava sentir para aliviar o medo. O abraço que me faria sentir viva.
- Olha o que fizeram comigo Elenice!
Puxei o cobertor e mostrei minha perna sem o pé direito. O semblante dela disse tudo. Ficou pálida! A cor dos lábios sumiu com uma rapidez incrível. Ficou muda olhando para a minha perna sem dizer nada! Não havia o que dizer!
Ficamos por instantes em silêncio.


ESTRANHA SENSAÇÃO


Minha filha chegou.
Ela tentava disfarçar, mas era nítida a sua agonia em me ver ali. Pelos olhos vermelhos, percebi que ela já sabia o que havia acontecido. Como sempre, Rosana tinha apenas palavras de força e de incentivo. Jamais vi minha filha se abater. Mesmo em momentos de extrema necessidade, ela sempre tinha um sorriso nos lábios. Sempre foi assim desde pequena. Uma flor e como meu irmão João dizia; uma jóia rara. Rosana para mim, era uma menina crescida que sempre precisaria de cuidados e de atenção. Parecia frágil, uma peça de porcelana, um cristal. Diferente da irmã que já puxou mais este meu lado prático. Posso dizer que Rosana é a emoção pura e Ariadne a parte prática, a razão. Sei que também se emocionava, mas jamais se mostrava abatida. Sei que tinha seus momentos de fragilidade pura, mas não era para mim, que ela demonstrava isso. Eu era assim. Jamais me vergava e quando vergava, nunca quebrava. Agora estava ali, diante de algo completamente novo em minha vida!
Rosana tentava me confortar. Falava em prótese e em uma vida normal. Eu olhava aquele semblante abalado, fragilizado. Não conseguia dizer nada. Perguntava da minha neta. Lembrava dela a todo o momento. Eu sabia que para ela seria difícil me ver assim. Eu também não queria ver naquele rosto lindo, as marcas de preocupação e tristeza.
- É engraçado, Rosana! Parece que meu pé está lá. Eu sinto ele! Posso até mexer os meus dedos.
- Ah mãe, é normal. Essa sensação é normal.
Eu não me sentia bem. Apesar da amputação, as dores ainda estavam presentes. Não podia me mexer na cama e no quarto, aquelas mulheres agindo como se estivessem em um clube. A situação pedia silêncio, reflexão, um momento para entrarmos em contato com nosso íntimo. Eu já não me sentia bem. Estava inchada, mal podia me mexer. Não queria ver ninguém. Queria ficar em silêncio, mas a balbúrdia no quarto era grande.
Minha filha estava lá. Olhava para mim. Uma mistura de dó, de sufoco, de desespero. Ela não sabia o que fazer para amenizar.
- Mãe, amanhã cedo a Luciene vem ficar com a senhora e a noite eu venho. Não vou conseguir deixar a senhora aqui sozinha. Vou ficar em casa angustiada.
- Não quero! Não quero causar nenhum transtorno!
Eu não queria ninguém ali comigo. Não queria me sentir dependente. Não aceitava aquela situação. Minha filha já tinha a sua vida sofrida. Não era justo nem comigo e muito menos com ela. Não tive força para dizer mais nada. Não sei o por quê. Não queria confessar que adorava tê-la por perto. Senti-me mais segura. Mesmo que a noite eu não conseguisse dormir, sabia que ela estava lá para me socorrer. O que me irritava, era acordar durante a noite e ver uma pessoa ali feito galinha, encorujada e sem fazer nada. Eu sabia que a situação era diferente. Eu não tinha mais o pé direito e sabia que podia precisar de auxílio. Na verdade, eu ia precisar de auxilio. Eu estava inchada, sentia dificuldades para me mexer, sentia dores e mais dores. Odiava a comida do hospital. Não aguentei e comentei com minha filha:
- As pessoas vêm aqui e não trazem nada para eu comer!
- Mãe, o hospital dá uma comida balaceada. Eles seguem uma dieta.
- Que dieta, Rosana! Eles só servem chá. Não vejo a hora de tomar café com leite, comer alguma coisa com sustância.
- A senhora quer que eu traga alguma coisa? Uma garrafa de café com leite?
- Traz minha filha! Traz sim!
As noites com minha filha lá, eram tranquilas. Enfim, eu podia dormir sem me preocupar. De manhã, as coisas ficavam mais complicadas. Tinha que tomar banho, fazer o curativo e dependendo das enfermeiras, eu tinha verdadeiro pânico. Elas não sentiam o mínimo...

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