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quarta-feira, 19 de agosto de 2009

ALÍ*

Não sei quanto tempo eu estava ali. Era um lugar abafado, escuro e sem ventilação. Eu sabia que estava chovendo porque escutei a chuva nas telhas. Não existiam frestas e o ar era pouco. Ficava deitado o tempo todo. Meus pés estavam acorrentados, minhas mãos presas e havia uma mordaça em minha boca.
Ouvia vozes, muitas vozes. Às vezes, ouvia o barulho da porta se abrindo e alguém chegando perto de mim. Desta vez tiraram a mordaça da minha boca. Antes eu os escutei falando com alguém. Ouvi dizer que o tempo estava acabando. Não sei com quem falavam. Sabia que era alguém da minha família. Todos deviam estar apavorados.
- Fala alguma coisa! Querem uma prova que você está vivo!
- Alô. Eu estou bem. Dê logo o que eles querem. Quero voltar pra casa!
As lágrimas caíram. Era inevitável ouvir a voz de quem se ama e não poder falar nada. Senti saudades, senti dor, senti medo. Eles queriam dinheiro, estava claro. Era questão de tempo e eu não estaria mais ali. Tinha certeza que tudo acabaria bem. Logo estaria em casa. Amordaçaram minha boca novamente. Sentia sono. O colchão era fino como papelão. O lugar úmido.
Parecia que fazia anos que eu estava ali. Apesar de tudo, tinha sorte. Eles não me bateram. Não me torturaram, apenas me deixaram acorrentado. Pensava em tudo. Na minha mãe, na minha mulher, na minha filha. Pensava em tudo o que devia ter dito e não disse. Pensei como eu era egoísta. Pensei no novo eu, se saísse de lá vivo. Pensei também na minha morte. Como seria sem mim. Como viveriam! Eles estavam cobertos e seguros para o resto da vida. Vi minha família chorando. Amigos. Não queria morrer daquele jeito. Morrer e ser jogado numa vala qualquer. Nunca havia rezado e derrepente me peguei orando, rezando, falando com Deus. Se fosse minha hora, que Deus amparasse minha família. Pedi perdão a Deus por tudo o que fiz. Adormeci.
Acordei com vozes e com uma certa agitação. A porta abriu de novo e senti me pegarem com força. Senti uma forte pancada na cabeça e desmaiei.
Não sei quanto tempo depois acordei. Estava sem a mordaça, sem a venda nos olhos. Estava no porta malas de um carro. Sentia apenas os solavancos da estrada. Mais uma vez me vi rezando. Não sabia se iam me libertar ou se iam me matar. O carro parou. Abriram o porta malas e pela primeira vez, depois de algum tempo, pude sentir o ar fresco. Era noite. O lugar escuro. Tentei olhar em volta, não havia nada. Eram quatro homens. Bem armados.
Colocaram-me de joelhos e sem falar nada, atiraram...
Acordei na hora. Vi o bilhete da mega sena em cima da mesa e o dinheiro para apostar. Levantei, fui até a mesa, guardei o dinheiro e rasguei o volante. Não queria mais saber daquilo. Não queria correr riscos e nem colocar em risco quem eu amava... Aqueles tiros me despertaram para minha verdade...

terça-feira, 11 de agosto de 2009

PERIFERIA*

Moro na periferia de São Paulo, há 23 kilômetros do Centro, extremo Leste da Capital Paulista. Um bairro com cerca de 500.000 habitantes. Pode-se dizer que é um bairro novo, no máximo vinte anos. Nasci aqui. Conheço cada pedra das ruas deste bairro. Posso dizer que já aprontei muito nessas ruas. Foi aqui que perdi a virgindade com uma colega de escola. Foi no apartamento dela. Os pais saíam para trabalhar e ela ficava sozinha. Incrível, que com apenas 16 anos, aquela menina, com carinha de inocente, conhecia muito sobre sexo. Além disso, fumava uma maconha que deixava muito marmanjo no chão. Como ela conseguia droga? Você já pode imaginar. Foi aí que também conheci o vício. Só que eu não podia fazer como ela. Tive que fazer meus corres pra conseguir meu baseado. Minha mãe pensava que eu ainda era criança. Sempre me dava dinheiro. Comi aquela mina uma porção de vezes. Até que um dia ela me disse que "tava" grávida e que o filho era meu. Brigamos muito. Chamei ela de todos os nomes. O que eu não sabia é que ela conhecia os "caras" da quebrada. Tomei minha primeira surra. Fui parar no hospital. Não tinha saída. Ou assumia aquela criança ou eu tinha que sair de lá, fugido. Acabei indo morar com ela no apartamento dos seus pais. Mesmo grávida, ela continuava queimando um baseado e eu ia junto. Fumávamos o dia todo. Agora, eu que arrumava o baseado. Ia roubar os "forgado" do shopping. Sempre dava jeito de voltar com um celular, com uma máquina digital, com dinheiro. Fui preso pela primeira vez com dezessete anos. Fiquei ainda mais na paranóia. Eu era menor e sabia que ia sair de lá rápido. Quando saí, cheguei em casa e vi a minha mina fazendo um boquete pra outro mano meu. Subiu o sangue. Saí pra comprar um cano. Ia matar aquela vagabunda e aquele cusão. Não consegui comprar o berro. Voltei pra casa depois de duas semanas. Andei por duas semanas feito louco pelas ruas. Dormi em bancos, conheci ainda outros nóias. Roubei pra poder comer.
Quando cheguei em casa, parecia um mendigo. Ela me falou um monte. Disse que fez o que fez porque eu tava preso e ela precisava fumar. Sempre fazia isso. Eu não disse nada.
No dia que completei 18 anos anos, meu filho nasceu. Era o maior presente. Queria levar uma vida descente. Tentei arrumar emprego. Comecei ser ajudante na feira. Acordava 4 horas da manhã pra carregar o caminhão e depois ia montar a banca na feira. Trabalhava de terça a domingo. Segunda feira jogava futebol. O moleque tava lindo. Não tinha nenhum problema. O moleque era de aço. Mas eu sabia que a maconha tava no seu sangue. Andava com o moleque pra baixo e pra cima. Sempre que dava, comprava um presentinho pra ele. Leite não faltava.
Na feira de quarta-feira, conheci uma mulher que me chamou a atenção. Marcamos de nos encontrar depois da feira. Fui pra sua casa. Tava cheio de tesão. Ela também queimava uma. Logo que entrei, ela já foi tirando minha roupa. Eu não sabia que tava comendo a mulher de um investigador de polícia. Ele descobriu. Mandou a mulher embora e veio atrás de mim. Tratei de comprar um três oitão pra me defender. O que eu podia fazer se foi ela que quis dar pra mim. O cara veio com sangue nos olhos. Invadiu o apartamento e sem perguntar me pegou e me jogou no camburão. Vi meu filho chorando e minha mulher sem palavras.
Andei naquele carro mais de duas horas. Eu sabia que eu ia morrer.
Quando abriram a porta do carro, vi que estava no meio de um matagal. Levei minha segunda surra. Fiquei jogado no meio do mato por dois dias. Largaram-me lá pra eu morrer. Continuava algemado e sangrando muito. Pensava apenas no meu filho. Acordei no hospital...
Estava na cama. Vi minha mãe, minha mulher, só não vi meu filho... Todo mundo chorava. Fiquei sabendo que a polícia revirou o apartamento e encontrou a arma e a droga. O conselho tutelar levou meu filho. Não disse nada, apenas chorei. Senti o sangue nos olhos. Pra mim não restava mais nada. Tiraram o melhor de mim. Minha mina era uma viciada, eu já tinha apanhado dos policiais e quase fiquei aleijado. Não me restava nada. Jurei que ia me vingar. Saí do hospital depois de duas semanas. Precisava de dinheiro. Voltei a roubar. Comprei um cano e fui pra cima. Arrumei uns parceiros. Pensava no meu filho. Lembrei da vagabunda que tinha me colocado nessa encrenca. Por causa dela tinha perdido meu filho... Eu estava cego...

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

FELIZ DIA DOS NÃO PAIS*

Nasceu no Jardim da Saúde, bairro da região do Ipiranga, zona Sul da cidade de São Paulo.
Não conheceu seu pai. Logo depois que completou um ano de idade, seu pai foi embora. Sua mãe era uma menina de 15 anos quando se casou. Seus avós cuidaram dele e de seus irmãos e da mãe também. A única coisa que tinha era a certeza que seu irmão lembrava muito o seu pai. Já tinha visto fotos e a semelhança era grande.
A vida apagou qualquer chance de encontro. Não fazia questão de encontrá-lo. Sua mãe contou tudo sobre ele. Se era verdade ou não, não importava. Ele acreditava nela. Na sua história. Nenhuma menina abandona sua casa, seus pais, se não for por amor. Ela o amou um dia.
Seus irmãos cresceram. Cada um seguiu sua vida. O irmão havia puxado o pai em tudo. Não gostava de trabalhar, bebia, fumava muito. Homem sem sonhos e nem perspectivas. Sua irmã, lutadora. Puxou a mãe. Não se deu bem no casamento e lutava contra o próprio destino. Mãe zelosa, criava com dificuldade seus filhos. Ele, mais um entre tantos abandonados pelo pai. Quis contrariar o mundo. Decidiu que ia ser feliz de qualquer maneira. Desligou-se do pai.
Num desses dias marcados pelo destino e sabe-se lá porque, encontrou seu pai, depois de 23 anos. Ele estava indo para a casa da irmã e viu de longe seu irmão. Não gritou e nem chamou, foi atrás. Chegou perto e viu que não era. Era um homem bem mais velho. Olhou e lembrou da foto. Era seu pai.
- Ricardo!
Aquele homem olhou.
- Você é meu pai. Eu sou o Eduardo, seu filho e da Marina.
Ele sentou no chão e começou a chorar. Chorou de, sabe-se lá o porque. Arrependimento, felicidade, raiva. Não se sabe. Levantou e começou a falar.
- Obrigado filho. Obrigado por falar comigo. Quero que saiba que tudo o que sua mãe contou é verdade. Tudo. Sou o que ela disse.
- Você já é avô. Tenho uma filha, meu irmão tem dois filhos e minha irmã mais dois. Você precisa conhecê-los.
- Como você me conheceu?
- Você é a cara do meu irmão ou meu irmão é a sua cara, o seu jeito. A mesma maneira de andar. Pensei que fosse ele. Por isso me aproximei.
- E ele está bem?
- Sim, todos estão bem. Eu, minha irmã, meu irmão, minha mãe e meus avós.
- Que bom, filho.
Ele olhava e achava estranho aquele homem o chamando de filho. Ele não era seu filho e aquele homem não era seu pai. Lembrou de todos os Natais que passou sem pai. Lembrou de todos os seus aniversários. Lembrou também do seu avô. O avô era o seu o pai. Foi ele quem esteve ali, na alegria e na doença. Era seu avô quem chegava e abria as panelas para saber o que havia para comer. Mas seu amor, sua compaixão pediam que aquele homem tivesse sua segunda chance e ele teve...
Resumindo, ele estava certo e sua mãe também... Ele era tudo aquilo, um alcoólatra, um preguiçoso e um desconhecido...

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

SEM SOL*

São Paulo, 24 de Fevereiro de 2040

Hoje completo setenta anos.
Há mais de quatro anos estamos sem sol, sem estrelas, sem lua.
Até hoje ninguém sabe explicar o que aconteceu. Ninguém sabe porque o sol se apagou.
Estamos vivendo na mais completa escuridão. Faz frio. Pessoas estão morrendo e seus corpos abandonados nas ruas. O frio e a baixíssima temperatura conservam os corpos. Há quatro anos não se escuta o cantar dos pássaros. Há mais de quatro anos, não chove. Há mais de quatro anos não se come uma fruta natural. Tudo agora é criado em laboratório.
O homem com toda a tecnologia, criou uma nova maneira de viver. Ninguém mais sai às ruas. Raramente se vê ou se encontra alguém. Os computadores estão ligados vinte e quatro horas por dia. Tudo é assim.
As crianças nascem com problemas de pele, de pulmão.
A gripe suína exterminou mais quatro milhões de pessoas. Acabaram com o câncer mas novas epidemias assolam a terra.
Estamos no mais completo escuro.
As drogas foram liberadas. São vendidas em farmácias. Inventaram novas drogas ainda mais devastadoras que o Crack.
Os jovens estão transformados. Parecem seres de outros planetas. Tatuados, perfurados, modificados. O aborto foi liberado. Hoje, metade das crianças não chegam a nascer. O lixo tomou conta de ruas e avenidas. A perspectiva de vida nesses quatro anos passou de oitenta anos, para quarenta e cinco anos. Os velhos como eu, são poucos, quase nenhum. Tenho saudades da minha família. Todos se foram.
Não há mais cemitérios. Todos os corpos são dissolvidos em ácidos.
Existe a pena de morte. Depois que o primeiro foi morto em rede nacional, a criminalidade diminuiu a zero (disseram que ele era inocente, mas nunca se provou). Houve uma grande migração do campo para a cidade. Não existe agricultura.
A Amazônia foi vendida. Não pertence mais ao Brasil. Nosso território diminuiu imensamente. O Rio de Janeiro foi isolado. Os criminosos que ainda resistem são mandados para lá. Os três estados do Sul conseguiram independência e agora são países.
Hoje completo setenta anos.
Já não escrevo mais. Minhas vistas estão cansadas. Estou aqui sentado no meu velho sofá. Esperando que a morte chegue.
Estamos há quatro anos sem sol...