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terça-feira, 5 de janeiro de 2010

PRA BEM LONGE*

Ele estava prestes a desistir de tudo. Não havia mais nada que o fizesse ficar.
O amor que sentia já não era mais suficiente. Precisava desesperadamente de um novo lugar. Um lugar onde não cenhecesse ninguém. Onde pudesse andar despreocupado. No fundo, ele sabia que não havia um lugar onde ele pudesse esquecer tudo. Podia mudar para o fim do mundo que seus problemas iriam acompanhá-lo.
Tudo estava dentro de sua cabeça. Ele já não conseguia pensar em uma saída. Queria apenas se livrar de tudo. Da roupa apertada, das palavras tão pesadas e cheias de cobranças. Até sua esposa que fora sua companheira para tudo, também já não o agradava mais. Os filhos, a casa, a empresa, amigos.
Ele perdera mesmo a vontade de fazer acontecer. Ele era um guerreiro cansado. Um guerreiro que volta da guerra pior. Cheio de problemas, cheio de cicatrizes. Às vezes era pego em viagens. O olhar ficava parado e mesmo que o chamassem, ele permanecia ali, em transe.
Um dia, acordou decidido a mudar tudo.
Colocou seu jeans, o tênis que havia ganhado da mulher, a camisa que havia ganhado dos filhos. Deixou objetos pessoais. Nada que o pudesse identificar. A mulher ainda dormia, os filhos também. Como era hábito ele acordar cedo, não houve suspeitas e nem alguma desconfiança. Desceu para a cozinha, bebeu quase um litro de água, pegou apenas o dinheiro que havia na carteira, cerca de duzentos e trinta reais e saiu de casa. Saiu andando a esmo. Nada se passava por sua cabeça. Não havia pensamentos. Não havia mais aquela angústia, nem mais aquele tormento. Andava apressado como se quisesse mesmo fugir de suas sombras. Andava como se quisesse deixar para trás todos os seus desamores e desafetos. Foi para o metrô, depois para a rodoviária. Olhava para tudo e tudo era vazio. Buscava um lugar para onde pudesse ir. Passou por todas as bilheterias e não encontrou destino certo. Estava com pouco dinheiro. Descobriu um lugar em Goiás. Preço da passagem duzentos e quinze reais. Era longe o suficiente. Mais de mil quilometros de distância. O ônibus faria o percurso em quinze horas de viagem. Embarcou com a maior tranquilidade. Estava sereno. Sentou-se no lugar marcado. Lado esquerdo, poltrona vinte e sete, na janela. Fazia calor. Abriu a janela e começou a ver tudo sendo deixado para trás.
No ônibus, poucas pessoas. A estrada era longa. Carros e mais carros. Fumaça, poluição. O céu queria ficar azul mas não conseguia.
Devagar ele foi se desligando de tudo. Uma espécie de amnésia. Não queria pensar em nada que fizesse com que se arrependesse, em nada que o fizesse voltar. As janelas abertas e o vento davam uma sensação de liberdade. Sentiu o estômago vazio. Lembrou que estava apenas com um copo de água. Iria esperar a parada para comer alguma coisa. Tinha apenas quinze reais para mais de quinze horas de viagem. Não queria se preocupar com isso. Queria colocar sua fé a prova. Sua crença. A primeira parada demorou. Estava exausto. Suado. Foi até o banheiro lavar o rosto e as mãos. Tudo estava muito sujo. Não havia sabonete e nem papel para secar as mãos. O espelho estava em pedaços. Não queria se olhar e ver seu rosto. Queria esquecer sua fisionomia. Esquecer tudo. Foi para o restaurante. Olhou tudo. Não queria gastar o pouco dinheiro que tinha. Comprou uma garrafa grande de água e um pacote de bolacha salgada. Voltou para o ônibus e continuou sua viagem. Não tinha noção de onde estava e nem que horas eram. Adormeceu...
A tarde foi caindo mansamente e bem no início da noite o ônibus fez mais uma parada.
O lugar parecia o sertão. Não havia nada perto. Apenas caminhões carregados que iam e vinham. Havia muita poeira e muita sujeira. Fui de novo ao banheiro. Não havia uma torneira intacta. Os vasos entupidos causaram ânsia. Saiu de lá enjoado. A fome apertou mais. Tinha ainda um pouco de dinheiro. No restaurante havia algumas pessoas jantando. Viu o preço e resolveu jantar. Comeu apressado pois logo o ônibus sairia. O prato tinha carne, batata, arroz e feijão. Pelo jeito tudo feito às pressas para atender as pessoas que passavam por lá..
Comeu e pediu para que enchessem a garrafa com água.
Voltou para o ônibus, sentou e viu a noite clara de um céu estrelado.
Um céu como nunca havia visto. Estrelas brilhando. Todas juntas e uma lua tímida.
Pela primeira vez lembrou-se dos filhos. Das noites em que ficavam deitados no chão do quintal tentando contar as estrelas do céu.
Sentiu uma angústia, uma dor, um remorso. Viu nas estrelas o rosto dos seus filhos aflitos. Desesperados com o seu sumiço. O ônibus ia sair quando ele pediu para parar. Ele ia voltar. Voltar dali. Desceu desesperado e o ônibus partiu.
Foi em busca de um telefone. O único que havia estava quebrado. Ficou sem saber o que fazer. Num lugar distante, de noite, sem dinheiro, sem telefone. A angústia aumentou. Foi até o restaurante e pediu para usar o telefone. Não havia. Começou a entrar em uma espécie de paranóia. Começou a gritar, a ameaçar. O dono do restaurante junto com uns caminhoneiros o pegaram e jogaram-no para fora. Antes bateram muito nele. Socos, chutes, pontapés.
Saiu machucado. Ficou sentado no chão, sentia dor, sentia o sangue escorrer.
Depois de tudo fechado, altas horas da madrugada, ele estava deitado no chão cru quando Teresa se aproximou com um pouco de água e um pouco de comida. Não falaram nada. Apenas se olharam. Ele comeu e bebeu. Ela ajudou ele a levantar e devagar caminharam.
- Perto de casa tem um telefone que funciona. Pode ligar de lá!
- Obrigado.
- O que foi que deu em você? Querer brigar, gritar, quebrar as coisas!!!
- Desespero!
Continuaram andando em silêncio. O sangue continuava escorrendo. Tentou dizer alguma coisa mas não aguentou e caiu, desfalecido... (Continua)

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

VOZ DE DEUS*

Sempre levei uma vida dura. Vida de muito trabalho. Não acreditava em Deus e nem podia, diante da minha vida sofrida.
Naquele dia, sem saber o porque, minha mulher resolveu ir para a casa da mãe com meus quatro filhos. Eu não concordei muito, pois eu queria passar a noite de Ano Novo com meus filhos.
Mas, como a nossa situação era precária, aceitei. Porém, disse que não iria junto. Eu ia passar sozinho, dormindo. Comi um pedaço de frango que ganhei de um vizinho e bebi um pouco de tubaina. Fiquei olhando a chuva. Meu barraco ficava no pé do morro. Eu nem queria ver mais os fogos de final de ano. Era a mesma coisa que ver as pessoas queimando dinheiro. Comi e fui me deitar. Não sei se chovia mais dentro de casa ou do lado de fora. Fiquei por um bom tempo ouvindo o barulho da chuva nas telhas. Acabei dormindo.
Sonhei com meus filhos. Estávamos reunidos em torno de uma mesa farta. Todos vestidos de branco. Minha mulher, como sempre, sorria muito. Meus filhos estavam felizes. Comiam e bebiam. No meu sonho eu não me via, mas sentia uma enorme paz e alegria. Depois da ceia fiquei sentado à mesa e vi meus filhos correndo pela casa, brincando. Todos foram para a varanda olhar a queima de fogos. O céu estava claro, iluminado por uma lua linda. Foi então que escutei minha mulher me chamar. Sua voz era nítida e forte. Chamava-me para ver os fogos. Queria que eu estivesse junto na virada do ano. Acordei com uma voz me chamando do lado de fora do meu barraco. Chamava meu nome. Chamava sem parar. Parecia desesperada. Coloquei a camisa e saí. Não havia ninguém. Cada vez mais ouvia claramente a voz me chamar. Logo que saí para o quintal, os fogos começaram a clarear o céu. Chovia muito. Eu fiquei ali sem saber o que fazer. Olhei para o céu iluminado e foi então que escutei um estrondo e vi meu barraco ser engolido pela terra que deslizou do morro. Fiquei ali, vendo a terra destruir o pouco que eu tinha.
Ajoelhei e agradeci pelos meus filhos que não estavam ali. Chorei pela minha mulher e agradeci a voz de Deus que me tirou dali naquele exato momento.
Logo eu, que não acreditava em Deus, via-me agora de joelhos agradecendo pela vida.