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sábado, 19 de setembro de 2009

A VIDA É ASSIM*

Fui tirado dos braços de minha mãe aos seis anos. Nunca disse nada para ninguém. Nunca reclamei e jamais esqueci aquele momento de dor profunda. Fui jogado em uma família com maiores condições que a minha. Sei o motivo da minha mãe fazer o que fez. Para ela alimentar oito filhos não era uma tarefa fácil. Às vezes, dividíamos um pacote de bolacha. Dormi muitas vezes com isso em minha barriga! Do meu pai, eu não me lembro.
No dia em que aquela mulher veio me buscar para morar com ela, ao olhar, sabia que nada era e nada seria às mil maravilhas. Sabia, na minha inocência, que aquela mulher não era um poço de bondades. Vi minha mãe recebendo o dinheiro de suas mãos e depois, suas lágrimas escorrendo. Havia algo que me assustava.
Fui sem olhar para trás, nem para minha mãe, tentando escapar de tudo aquilo. Não consegui escapar.
A minha nova casa era grande. Ganhei um quarto no fundo da casa. Era simples. Uma cama, um criado mudo, uma garrafa de água. Havia uma comoda, com alguns lençóis e algumas toalhas. Não havia janela, nem banheiro. Ela me colocou no quarto e saiu. Chorei demais. Eu devia ter seis ou sete anos. Tudo ali era novo e não havia mais ninguém. Lembrava da minha mãe chorando quando pegou o dinheiro. Fiquei aliviado porque sabia que por alguns dias, meus irmãos teriam o que comer. Adormeci e fui acordado aos trancos. Aquela mulher dizia que era para ir tomar um banho, pois logo viriam me buscar. Senti um calafrio tomar conta de mim. Nunca esqueci daquela sensação. Chegaram dois homens e uma mulher. Tiraram a minha roupa e um dos homens começou a me examinar. Enquanto isso, a mulher que pagou por mim, discutia com a outra sobre valores. Vi uma pasta de dinheiro. Só depois fui entender que aquela mulher, que minha mãe considerava uma santa, tinha me vendido de novo para outras pessoas por um valor maior. Fizeram eu colocar uma roupa branca e me colocaram num carro com mais seis crianças. Todas pareciam ter a mesma idade. Estavam como eu, assustadas. Na minha idade, eu não tinha a noção de tempo, mas me lembro que o carro que estávamos andou por muito tempo. Quando paramos, todas as crianças foram colocadas em um quarto. Eram depois chamadas uma a uma e gritos eram ouvidos. Hoje sei que aquele lugar tinha um forte cheiro de éter. Estavam todas amedrontadas. Eu só queria sair daquele lugar, mesmo não sabendo onde eu estava. Queria fugir. Minha mãe sempre dizia que eu era muito esperto. Lembro que olhei tudo e vi no canto do teto um alçapão. Foi por ali que escapei com a ajuda das outras crianças. Ainda pude ouvir os gritos de desespero daquelas crianças que tentaram fugir e não conseguiram. Joguei-me no meio do mato porque tive medo que eles me achassem. Passei a noite no meio do mato. Foram horas e horas chorando. Assim que o dia clareou, sai do mato e comecei a andar. Encontrei um carro da polícia e logo me abordaram. Eu estava com fome e chorava. Não conseguia falar e quando falava as palavras eram desconexas. Depois que comi, consegui falar e contar o que havia acontecido. Falei da casa e das crianças e a polícia logo cercava o local. Descobriram que ali funcionava uma clínica clandestina. Eles retiravam os órgãos das crianças e os vendiam. Encontraram corpos de pelo menos cinco crianças e mais cinco foram encontradas ainda com vida. Foram presas três pessoas. Não soube nada sobre aquela mulher. Fui colocado em um orfanato e depois de alguns dias fui adotado por um casal que não podia ter filhos. Eles não souberam da verdade. Não souberam o que havia acontecido comigo e que havia em mim, um passado. Cresci, estudei e virei médico. Cuidava de pessoas idosas.
Num dia que parecia comum, entendi que não existem dias comuns. Entrou no meu consultório uma mulher amparando uma senhora que havia caído no banheiro da sua casa. Eram pessoas humildes que moravam ali na periferia. Olhei aquelas duas e algo soou dentro de mim. Atendi e naquelas conversas de médico e paciente, fui somando informações. Era minha mãe e minha irmã e eu, não disse nada...

6 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Merece virar um livro, principalmente porque trata de um drama vivido por muitas crianças, a maioria com um final não tão feliz assim.
    Mas daria um lindo romance. Forte e cheio de emoção.
    Adorei. Parabéns.

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  3. Forte demais.
    Um abraÇo para você desde Buenos Aires.

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  4. Uma coisa mas: linda compartir a sua poesia e a poesia do seu pais. O fenómeno do blog é algo maravilhoso, nao acha?

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  5. Há uma brincadeira em meu blog...

    Você esta convidado a participar se quiser...

    desde já agradeço!!!

    beijinhuuss

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  6. Que texto incrível.

    Absolutamente profissional, e diria mais , muitos dos chamados "profissionais" que andam por aí, não seriam capazes de bordar com tanta precisão, este tecido literário de forma inpecável, absolutamente emocionante e comovedor.

    Parabéns companheiro, é um orgulho saber que você é meu seguidor.

    Sinceramente!

    Um abração carioca.

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